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    Barceló de Carvalho “Bonga” ‘Sou nacionalista e rebelde

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    Sabemos que tem um novo disco na forja, mas o que é que representou para si o anterior, Bairro, que foi uma homenagem ao Marçal onde viveu?

    Aquilo foi um chamamento a quem já lá viveu, mas não tem a ver especificamente com o bairro Marçal. Tem a ver com todos os bairros onde que nós frequentamos, crescemos e fomos educados. Cimentamos algo que tem a ver com este país, com as tradições e todos os velhos, sobretudo que nos transmitiram coisas maravilhosas.

    Porque quando a gente já vai para as faculdades, universidades e escolas técnicas, sobretudo quando tomamos conhecimento da cultura dos outros, regra geral brancos, europeus e americanos, esquecemos aqueles lugares onde como garotos respeitamos aos nossos pais e avós e aprendemos a comer o funge, kitaba, ngonguenha e farinha com açúcar. Fica complicado quando a gente apaga da memória a vivência do antigamente, que fez de nós africanos específicos daquele lugar. E o bairro teve a ver com isso, foi tremendamente bom que até hoje ainda estou a digerir este bairro música do recordar destas tradições. O bairro para mim teve uma importância capital e continua a ter até hoje. Cada música tem o seu peso específico, porque mesmo estando fora há mais de 40 e tal anos, o importante é retratar coisas daqui que tenham cabimento.

    E o bairro para mim foi esta síntese dos primos, amigos, com a porta sempre aberta e entra qualquer um em casa, tem logo um prato na mesa, uma cordialidade que o europeu não tem mais. Para mim foi fundamental e recordar isso para educar novamente as crianças do hoje, que estão aí numa de seguir as tecnologias que não facilitam o repor entre homens e mulheres específicos deste lugar do continente.

    Quando vem a Luanda visita o Marçal?

    O Marçal está degradado como todos os outros bairros típicos daquele tempo.

    Já lá esteve?

    Quer dizer, eu vou de carro, porque dizem que não é muito aconselhável descer do carro sozinho e enfrentar as multidões. Primeiro, também não vamos ser ridículos, sou conhecido, as pessoas vêem e não sei o que isso vai trazer em matéria de complicações.

    Mas é certo que vejo o bairro a distância, como as coisas estão degradadas, mas sinto que há algo a fazer. Até dizem que há associações, não é verdade, não sei o que estão a fazer. Como não estou aqui e nem vivo aqui, não acompanho assim de perto e os que cá estão também não me dão assim uma panorâmica da aproximação em si das pessoas e da valorização destes mesmos sítios. Acho que há ideias que não são postas em prática, como os clubes do antigamente, como os Maxinde, Marítimo da Ilha, Mãe Preta. E hoje o que é que há? Eu quero saber.

    O que é que há para si?

    O que há é um ou outro que tenta fazer qualquer coisa, mas já não é bem naquela vivência do antigamente, com muito mais peso e representatividade. Se calhar porque tínhamos como dirigente um colono que não era muito sensível as nossas coisas, mas hoje é preciso que os nossos dirigentes tenham mais consciência disso e dêem muito mais força a esses lugares, tradição e principalmente os seus representantes. Estou a falar do carnaval, foclores, kituxes e sembas muximas, etc.., destes nomes sonantes que conservamos e não tenhamos complexos.

    Agora há muita coisa a fazer, evidentemente, mas vamos estar sensibilizados nas coisas que são nossas, não nas coisas dos outros. Parece-me que às vezes perde-se um bocado de tempo nas coisas do Brasil, R&B americano, da Europa, não é verdade, dá-se muito mais ênfase nisso, o que não é muito bom para a conservação das nossas tradições.

    Viveu em bairros como Marçal, Bairro Operário e Coqueiros. Como é que vê Luanda hoje?

    Quer dizer, tomando em conta o tempo conturbado que tivemos aqui, isso fez com que nos afastássemos de outras realidades que seria bom conservar. Esses bairros, de facto, contribuíram para a nossa formação, de homens e mulheres que se impuseram aí, mesmo do ponto de vista das lutas e das reivindicações, esses musseques foram o ponto de partida para muitas coisas maravilhosas.

    O que é que os seus amigos de infância, que vivem no país, lhe dizem sobre Angola dos tempos de paz?

    Cada um tem o seu ponto de vista.

    Alguns a titubear diante da democracia, das liberdades, mas quero sublinhar aqui a emancipação porque no tempo da outra senhora tivemos que nos emancipar com 14 anos. Eu com 14 anos já era um indivíduo feito, como todos os indivíduos da minha geração. Tínhamos de fazer coisas extraordinárias, os recados que levávamos dos velhos, as lides caseiras, éramos transformados em troncos das famílias quando os velhos não estavam. Cada um tinha uma actividade a fazer e depois com aquela vivência, mesmo com a determinada carência dos bens de consumo alimentar, o que é certo é que houve resistência e isso permitiu que se distinguissem negros muito capacitados das nossas gerações e daquelas que já foram, com coisas muito acertadas. Os tratos que nos tínhamos, quer dizer a importância do velho como o tronco da família, a respeitabilidade, os exemplos que eles dava, isso fica na minha cabeça como memória de coisa viva que não deixa nada a desejar em relação a outros povos que resistiram tremendamente.

    Isso aqui foi uma história tremenda e foi muito bom ter sido assim.

    Já que fala em resistência, tem-se dito que Bonga é uma pessoa que resistiu à aculturação, mesmo vivendo fora. Porquê?

    É importante ser assim, como dizia atrás se não tivermos identidade estamos feitos. Muito embora a gente tenha passado pelas escolas técnicas, o que é certo é que conservando as coisas daqui temos uma maneira de ser nossa, que é preciso de conservar, ainda que isso venha a carga cheia do calão, gíria e para não falar das línguas nacionais. É algo que nos define e é aí que somos verdadeiros, não vale a pena a gente estar a filosofar alguns programas que a gente vê com o linguajar tuga, especificamente, com aquela entonação. Acho que isso vai passar porque a grande maioria tem uma expressão a ver com uma vivência mais em conformidade. Já foi assim e continua a ser assim. Há indivíduos que conheço de um determinado local que deste país que é Angola que não consegue dizer ‘plural’. Vi indivíduos na prova oral da 4ª classe da instrução primária a dizerem ‘prural’ e serem reprovados no tempo da colonização.

    Eu sentiria muito mal e chocado ao ver um angolano daqui a ser reprovado numa prova oral da 4ª classe com os nacionais a dirigirem o país. Está a ver as diferenças?

    É por isso que temos de saber falar com as avós em casa, vizinhos e os indivíduos do interior do país, ligando as pessoas umas às outras por sermos todos nacionais e patriotas, porque no outro tempo até se gozava quando se dizia que se falava o ‘pretuguês’. Isso é um chamamento muito importante para consciência de todos nós. Havia uns indivíduos que tinham um cerimonial com aquelas faquinhas na cara, que é um ritual que existe aqui na terra há muto tempo, nem o colono estava cá ainda, e falava-se mal deste povo, porque falavam mal o português, tinham o ritual e comportamentos não sei quanto. Isso tudo é atraso porque o homem assimilado ao imitar o branco tinham um comportamento de atrasado porque desconhecia a cultura do seu povo. É uma coisa muito triste que fomos constatando ao longo do tempo e hoje é preciso dizer que a nossa juventude e a nossa população que o que se vê na televisão nem sempre serve para consumo. Podemos nos servir das coisas técnicas para melhor apetrecharmos o que é nosso, mas reconhecermos que cada ser humano tem o seu valor e este seu valor é que tem a ver com a personalidade desta força enorme que se chama Angola, em que pertencemos todos. E esta coisa do preconceito de se discriminar alguém que não sabe comer com a faca e o garfo faz parte do passado, mas esqueceram-se que o mais atrasado era aquele que criticava e não aquele que comia com a mão, que é a sua forma normal. Se é um chinês ou um japonês até torna-se exótico e gostam dele, temos esta coisa do complexo que nos foi incutido pela colonização, mantiveram isso por muito tempo. Ainda há quem goze com isso, que se fale disso, a mim chegaram a dizer ‘kota Bonga, então você já com essa tua postura intelectual, fala várias línguas e escreve, viaja pelo mundo, ainda canta calão e gíria?’. São estas pessoas que são atrasadas com esse tipo de observações. È preciso dizer a elas que quando, de facto, forem contactar outras pessoas para estarem a vontade, para representarmos este povo em toda a sua plenitude.

    Tem sido fácil manter esta postura lá fora, porque disse um dia que os europeus dificilmente reconhecem os músicos africanos quando se apresentam com a identidade puramente africana?

    E, sobretudo, temos os nossos ‘intelectuais’ que complicam as andanças, porque eles imitam os europeus e acham que todos os africanos têm que se submeter. Isto é que é triste porque são os próprios africanos que ficam a discriminar os seus compatriotas e complica porque ainda estamos perante o racismo e os preconceitos.

    Tive que me bater para me impor como músico de uma música que era discriminada, era chamada a música do preto e do gentio. E é esta música que impus lá fora. O instrumento mais importante para mim é a dikanza, que alguns ainda chamam reco-reco como o português, por causa do barulho que fazia. Temos nomes próprios das coisas e dos instrumentos. O kitande, há indivíduos que chamam feijão pisado com aquela entonação de Portugal.

    Isso é triste, quando temos uma camada social que prima pela imitação quer dizer que nos vão pôr novamente a mercê das tais colonizações ou neocolonizações, como quisermos.

    Não se dão conta do ridículo, é que temos uma maioria de pessoas que se exprime de outra forma, ou melhor, da forma que acham melhor. Mas quando é o brasileiro que fala, aí está-se bem porque foi o brasileiro.

    Não diz fato completo, diz terno e a gente já imita. Como os brasileiros são brancos, então tá-se bem e imita-se facilmente. Deixa-me dizer-lhe que tive muitos problemas para impor a música que hoje ganha ouros e platina nas europas, mas foi preciso um trabalho tremendo. Mas a nossa gente e os nossos músicos continuam a fazer concepções, quererem fazer uma certa mistura de salsa latina com música brasileira, porque hoje há a mundialização e temos que misturar com os outros. Acho que nesta mundialização devemos primeiro definir as coisas, dando as nossas coisas específicas, porque temos ritmos específicos porque a gente resistiu. Por esta razão hoje existe o semba, kilapanga, kabetula e kazukuta, porque os outros antes de nós impuseram tudo isso e temos que respeitar.

    Como é que caracteriza hoje a música angolana?

    A música angolana está cheia de iniciativas, criatividade, principalmente desta juventude, que não pode esquecer que nós já tivemos aqui o R&B, rock n´roll, até há quem cantou tango, valsa e merengue. Mas isso é uma grande abertura que temos na tal porta da mundialização. Esta música angolana está boa de saúde, primeiro porque conserva determinados ritmos que são originais e depois vai fazendo outras coisas para se provar ao mundo que também não estamos fechados num gueto. Podemos abrir o espaço e termos outras coisas. Imaginemos estas crianças que agora fazem aquilo que se diz o kuduro. O kuduro é uma brincadeira e esta brincadeira faz com que os miúdos aguerridos estejam aí com uma força extensiante, que nos caracteriza porque a gente está cheia de criatividade em cima. E o semba está aí muito bem de saúde e muito bem representado por esta juventude. Mesmo quando fazem o kuduro, há sempre um sembazinho aí como identidade própria.

    O kuduro é um estilo de música?

    O kuduro está-se a fazer um estilo de música dos repentistas. Está um fenómeno muito sério porque eles estão a tentar manifestar as coisas do dia-adia, a transportá-la para esta música, que é uma expressão viva da miudagem. Foi assim que aliás que começaram outros ritmos e não é nada muito negativo como outros dizem, porque é muito pornográfico.

    Há tanta coisa que acontece no mundo que a gente não começa logo por ser pejorativo.

    Tudo começa por ser uma animação, uma expressão viva onde se integra uma série de coisas, não é verdade, que tem a ver com as manifestações normais que esta miudagem tem. Isto depois entra na tal disputa entre os bairros que já começou a ver. Agora que isto está aí a ter uma força tremenda, sim senhor. Eu já fui solicitado a dar uma força nos putos, o próprio Dog Murras já me telefonou e já tive a fazer uma coisa com ele que veio nos vídeos clipes dos miúdos e a gente está para dar força. Põem um instrumento ou outros, mas depois a gente fica sem saber se é semba ou zouk, como eles dizem, ou se é kizomba. Mas o certo é que é uma fusão de coisas que certamente vai surgir algo benéfico e muito importante.

    Há quem pense que há também resistência de se reconhecer o estilo em Angola, enquanto outros lá fora vão aproveitando. Quer comentar?

    Há sempre um aproveitamento, até naquilo que a gente estiver a fazer.

    Se quiserem aproveitar, aproveitem e transmitam como quiserem, mas o certo é que o angolano não pode ficar eternamente reticente porque há coisas daqui. É uma coisa daqui, nasceu aqui, tem força e expressão própria, servindo-se da imaginação criativa destes putos que são terríveis, dançam e têm uns passos incríveis e específicos. O kuduro é já uma inovação e temos que tirar o chapéu e reconhecer. Sou um dos kotas que dá força para que estas coisas apareçam, sem desprimor para as outras que têm definição para o país, já estão aí há muitíssimo mais tempo, como o semba e kilapanga.

    Com mais de 30 discos no mercado e trezentas canções, onde é que busca ainda tanta inspiração desde que lançou Angola 72?

    Isso tudo é a motivação, porque estou motivado. Mas também tive uma escola tremenda. Sou um privilegiado porque tive a tal escola da resistência, dos velhos que faziam isso por obrigação. Era obrigação da gente transmitir coisas importantes e os velhos transmitiram para nós porque era a vivência que eles tinham.

    Por outro lado, era contra as forças coloniais que impediam que a gente se manifestasse culturalmente. Lembrome do carnaval, quando eles diziam que era dos pretos, dos pés descalços, eles não se preocupavam muito. Mas quando se fez a fusão, por iniciativa do Fontes Pereira, dos estudantes, funcionários públicos e outra gente, para um carnaval mais livre e compacto a polícia entrou em cena com cacetadas, houve mortos e feridos. Naquela altura era bom e sou desta geração que acumulou uma data de coisa que depois serviram e têm estado a servir para as minhas composições artísticas. Agora lembrar-me de tudo isso é a minha vivência a mais importante.

    A gente que deve estar a pensar mais o gajo como tão depressa pode estar em Londres, Berlim ou Paris, mas tenham paciênciaj, porque não é demagogia, o que os musseques nos transmitiram naquelas alturas dos primeiros 23 anos de vida foram muito mais importante em matéria de enriquecimento do que os anos depois, porque agora é só desfrutar.

    Tão depressa estou num carro luxuoso como estou num avião a fazer uma ida para representar o meu país, tenho consciência disso. Há melhoramento materiais, mas tenho que recordar das coisas do antigamente para produzir as músicas da actualidade porque não canto as rosas, a lua, o sol, o mar e as gajas, no sentido de mulher, bunda, sexual e quê, quê…Não canto nada disso. Canto principalmente o sentimento de um povo que tem força para lutar contra o racismo que ainda, porque discrimina e nós continuamos a nos impor como estamos a fazer actualmente.

    Algumas mensagens das suas músicas foram polémicas e, se calhar, mal interpretadas, como por exemplo “Maria Kasputo”, “Zé Kitumba”, “Kaprikito”, “Uma era” e outras. O que é que procura transmitir concretamente?

    O que me faz rir é a interpretação do povão. Nem sempre faço as tais músicas para ter os chavões que o povo depois apelida. E isso é muito bom e se calhar até é uma das minhas especialidades, nas entrelinhas dizer algumas coisas. Mas o povo tem as suas interpretações e isso é que me faz rir. Mas rir de contente e não de angustiado ou fazer a interrogação. Estou satisfeito de saber que as pessoas que vivem no terreno as causas que não estou a viver, que posso estar a transmitir através de um tema, e este povo afinal dá outras interpretações ou muito mais do que aquelas que imaginei ao fazer a música.

    As interpretações do povo são erradas?

    Não, são interpretações dentro da sua imaginação e de acordo com vivência que estão a ter. Por exemplo, a Maria Kasputo não é a Maria Eugénia. É aquela angolana que hoje já não bate o funje e vai chamar a tia, que não consegue fazer o funje em casa porque não sabe. Mas daí eles, porque tiveram razões ou não, interpretaram que foi aquela senhora.

    Então é ela, porque é tuga. Isso me faz rir e ao mesmo tempo reflectir como muitas outras músicas, são cerca de 400 músicas inscritas na Sociedade de Autores e Compositores. Às vezes me perguntam tanta música, tanta coisa? Se calhar continuo fértil em matéria de realizações a ver com o país.

    Como é que será o novo disco?

    Vai continuar com a mesma tonalidade? Tem sempre recados. Aliás isso já se tornou rotina, não é novidade para ninguém.

    São recados para quem?

    Para toda a gente. Por exemplo, há um recado para os kotas. O disco vaise chamar ‘Hora Kota’, porque não sou dos kotas frustrados. Sou dos que continua a dar coisas no seguimento de uma certa ética e de maneira de ser com exemplos. Então ‘Hora Kota’ é aquela hora do reconhecimento dos valores, tradições, personalidades, aconchego familiar, exemplo, da mão amiga. Daquelas coisas que a gente viveu no outro tempo. Por isso considero-me um privilegiado por ter recebido esta educação e a força anímica, magnética dos kotas do antigamente. Depois tenho outra música que fala desta juventude de hoje que parece que para terem virilidade têm que beber 50 garrafas de cerveja. O álcool não dá virilidade a ninguém, nem dá pulungunza como se diz. É tudo uma ilusão, por isso há os acidentes que se vêem nas estradas. É preciso um chamamento a esta juventude para que tenha calma. Eu como já vivi mais anos do que eles, se reforço a ideia de que o álcool não é nada daquilo que eles pensam, então é uma opinião e um contributo. Tenho uma música também que fiz para o Fontes Pereira, que para mim é um dos grandes maestros, compositores e realizador da coisa nossa. É o homem que criou a escola do semba, o grupo Ngongo e o teatral. É o homem que esteve na origem do tal carnaval que a Polícia colonial reprimiu, porque era complicado ter um povo reencontrado e a manifestar. Portanto, canto para ele e não sei como é que ele vai receber isso. É por causa do coração, é preciso tomar cuidado. Depois são todas essas coisas que a gente põe na música, porque se me perguntarem o que penso sobre os letristas de hoje é muito vago. Não têm conteúdo, porque sistematicamente estão a falar do assunto do cubico, da mulher que se zangou com o marido que tem Luanda 1, 2 e 3, é sempre aquele assunto porque não trouxe dinheiro em casa.

    Isto está gasto. Mas o brasileiro é um dos povos que mais fala do amor, tudo é amor, mas depois a gente que depois há declínio. Onde é que se vai com este amor todo, quando afinal nem há. Há determinados indivíduos que falam de amor, mas afinal são os primeiros a espancar a mulher. É motivo para a gente perguntar, afinal o que se passa? Mas isso tem a ver com o conteúdo político. Há um outro tempo que houve as baladas revolucionárias no sentido único, ninguém tocava no Governo, ninguém criticava. Era só falar no sentido da revolução, o 1º de Maio, o meu partido. Isso depois passou e empobreceu-se um bocadinho a tónica musical pelas palavras, que era todo chavões e palavras de ordem.

    De repente, estou à procura do artista ou músico mais emancipado, que pode falar de tudo sem preconceitos e medos. Não há coisa melhor do que sermos livres efectivamente. Cantar uma crítica dentro de uma música é muito bem-vinda, continuo a fazer isso. Aliás, há uns miúdos aqui muito ousados que falam um bocadinho de tudo. Não vou aqui citar nomes de nenhum deles ou de nenhuma delas, mas o que é certo é que já há miúdos a fazer umas músicazinhas onde a gente já escuta que há uma história tão bonita. Tipo essa história do cambúa, que é essa nossa dança que ponho umas certas interrogações, porque é mais uma dança de excitação sexual.

    A mulher está a dançar parece está a fazer o afro-gim num ginásio. Se a gente não toma cuidado ainda leva um soco, porque está a dançar tipo que está a lutar. Sou do tempo em que há aquela subtileza da mulher, o tal semba dançado, mas não a forma do Zaíre. Não podemos estar aqui a dançar tipo ‘Congo, Congo Na ngai’. Já tivemos coreógrafos do nosso semba e do carnaval, só que não estão assim muito visíveis porque se perdeu um bocadinho e ficasse naquelas danças de imitação, daquelas danças estridentes onde a mulher parece que está no boxe. Vai ser preciso combater isso um bocadinho, mas isso é pertinência jovem. O que é certo é que há sempre uma coisa para se dizer dentro de uma música.

    Apesar deste ponto de vista, sabemos que tem sido procurado por muitos jovens para duetos. Como é que vê isso?

    Isso é para mais-valia e até para um certo oportunismo da parte deles, procurarem um cabeça de cartaz, que é um exemplo, para dar força no trabalho deles. Eu é que tenho de os educar um bocadinho. Chamar-lhes atenção e corrigo a música deles. Há um que chegou outro dia, peguei nas palavras dele que tinha no papel e pus no lixo. Disse-lhe que fizesse outra coisa para ver se pudesse contribuir e mesmo o próprio ritmo que eles querem. Continuo a fazer isso e acho que é importante. Todos aqueles que me contactaram sabem que corrigi, informei e que tenho sempre uma palavra para dizer. Gostaria que houvesse mais kotas a dar este exemplo e a transmitir uma outra forma de ver as coisas, com um conhecimento mais plausível e em conformidade com as tradições. Por isso é que se conserva, de outra forma estaria a dizer-lhes para cantarem outras coisas, da bebedeira, da chulice, mas isso não faz parte da minha linha.

    Qual é a matriz da música angolana?

    A matriz se tomarmos em conta que esta música, tónica e rítmica cultural saiu daqui e alimentou outros povos a nível do mundo, nomeadamente Cuba, Salvador da Baía, Estados Unidos da América, República Dominicana, Santo Domingos e outros, então nós somos a originalidade. Então temos que primar pela originalidade e tem muito que se lhe diga. Derivado desta assimilação e da presença nociva colonial, que nos tentou separar um bocadinho da nossa raiz e história, ficou complicado, estávamos a perder um bocadinho desta matriz. Agora temos toda a possibilidade de nos reencontrarmos porque está tudo aí, os músicos, os livros que foram publicados e alguns velhos. Por conseguinte, é muito bom a gente voltar um bocadinho para nos informarmos convenientemente para nos reencontrarmos imbuídos de saberes que nos definem.

    E essa matriz é exactamente a tónica de cada um dentro do seu específico sem sair de África. Sabemos que a Europa está metida aqui dentro, quer queiramos ou não, para nos induzir a fazer outras coisas que têm mais a ver com a Europa do que propriamente com África. A simples forma de comer, andar, dançar, admitimos coisas que não são muito nossas, mas já se enquadram porque é a mundialização.

    Mas eu digo espera aí, nós que estamos lá fora e que ainda não cedemos, porque senão vamos começar a cantar em francês.

    Como é que viu uma das suas músicas a ser cantada pelos belgas do Vaya Com Dios?

    Somos nós que temos força e estamos a impor coisas. Muito recentemente no Olímpia de Paris, que é a sala do music hall internacional, estive com um cantor que é o terceiro mais bem pago depois de Johnny Hallyday, que é o Bernard Lavillier. O Bonga foi o seu convidado de honra. Ele cantou as músicas do Bonga. É o Martinho da Vila, Alcione, Manu Dibango que cantam a música do Bonga e outros mais.

    Isto é muito bom, sinto finalmente que o meu trabalho está muitíssimo bom e que as pessoas estrangeiras, inclusive, ficam impressionadas e vêm cantar a música do Bonga que é de Angola, isso dá-me imensa satisfação. Mas não acredito que os angolanos estejam conscientes do valor que isso aí tem.

    Nós não centralizamos ou não convém, por enquanto, falar-se desta carta de visita. Podemos falar dos outros países, do Bob Dylan, Roberto Carlos, que já vieram aqui ganhar fortunas.

    O Julio Iglesias, mas não se acentua muito a valorização e o respeito. Não falo só do Bonga, mas sim de outros elementos neste país que nem sempre são ajudados como devia. Estou a falar da ajuda e dos patrocínios que às vezes se dá sobretudo em relação ao local de actuação ou do espectáculo. Onde é que a gente vai ver o Carlos Burity? Não tem espectáculo marcado. Onde é que vamos ver o Elias Dia Kimuezo? Também não tem. Onde é que eles estão a cantar em Angola? Também só se canta nos dias de feriados, no 1º de Maio ou na data do partido. Existem discotecas, clubes nocturnos, salas de espectáculo que é necessário produzir a música de Angola com os artistas que fazem parte da praça para o artista poder viver do seu trabalho. Eu vivo do meu trabalho.

    Sente-se marginalizado de alguma forma?

    Não sinto, porque também não dou estas confianças. Eu imponho-me como tal e estou sempre a brilhar

    Foi o primeiro africano a actuar no Olímpia de Paris e a conseguir um disco de ouro em Portugal. Acha que já conseguiu tudo que pretendia lá fora?

    Lá fora, talvez. Mas sabe que as mesmas reticências que há aqui no país de origem também as temos lá fora, por causa dos interesses comerciais. Os indivíduos que investem em Angola e vêem cá buscar kumbú podiam muito bem abrir as fronteiras nos países deles de origem e darem aquilo que Angola já me deu. Os tais títulos da Cultura, do indivíduo que mais divulga a música no exterior. Mas lá fora pensam duas vezes, houve quem me tivesse perguntado mas o Bonga começou a cantar da Cesária Évora e até cantou uma música ‘Sodade’, de Camilo antes dela, mas não foi premiado por governos, com excepção do alemão. Em Portugal o que foi que aconteceu: digo que se calhar tinha a ver com a minha ousadia e o meu engajamento, principalmente quando fui à Jamba. Sabe que fui à Jamba e automaticamente disseram-me que acabou. Mas quem me disse isso, ao mesmo tempo também disse de caxexe que nós gostaríamos de facto de te dar a Grã-Cruz não sei de onde, mas depois o seu país vai reagir. Está a ver o oportunismo a jogar? Não gosto de pessoas assim, não dou confiança neste tipo de andarilhos, que dançam consoante os interesses. Quantas vezes não fui evitado, até países que não vou dizer nomes mas são lusófonos, que queriam dar passaportes diplomáticos ao Bonga, porque ajudei tanto os países deles na hora da independência, como ajudei o meu país Angola. Mas não deram os tais títulos porque não convinha. Para nossa juventude, se o Bonga disser que sofreu foi com esse tipo de coisas dos oportunistas políticos que jogam consoante a música, porque não convém determinadas nomeações, considerações, elogios ou menções honrosas.

    Muitos recuaram, mas diziam isso de caxexe quando fosse a casa deles ou às embaixadas. Diziam-me no ouvido aquilo que não assumiam no papel. Este é o grande desrespeito que vejo que há indivíduos, como diz o brasileiro ‘bunda mole’, que estamos cheio deles e que não dão constatação de facto. Os prémios fui receber da França, Alemanha, Estados Unidos, são pessoas que chegam e dizem que você pela voz que tem e às vezes não sabem o que estou a cantar. É pelo profissionalismo, porque vivo disso sempre e não recebo subvenções de ninguém. E aí está-se bem.

    ‘RECEBI O PRÉMIO DA CULTURA UM BOCADO TARDE’

    Recebeu recentemente o prémio nacional de cultura e arte na categoria de música. Acha que esse reconhecimento chegou tarde?

    Foi um bocado tarde, mas como diz o outro antes tarde do que nunca, porque senão ia ficar ridículo. Quando a gente vê o currículo do Bonga e vê que não tem um prémio. Vai ver os outros e depois pergunta porque estes e o outro não. Vale sempre a pena, mas gostaria de dizer o seguinte: quando se tem um prémio desta envergadura melhora-se solicitando o próprio homenageado.

    Ainda não fui solicitado desde que recebi o prémio e há eventos em Angola que fariam com que galardoados com os prémios de cultura viriam.

    Convidem os prémios a virem. Os políticos estão em sintonia com os artistas, com os actores da grande movimentação social ou político, mas nós não somos muito ousados.

    Aliás, os políticos africanos são pouco ousados, ficam sempre à espera que o chefe resolva e mandam recados.

    Temos que ser pessoas capazes de ter iniciativa. E as iniciativas devem ser em conformidade com o sentimento.

    Vamos convidar o fulano que é prémio da cultura porque vamos ter aqui vários estrangeiros. Às vezes fico com a sensação que se recebe melhor os estrangeiros do que os próprios ditos nacionais e isso é complicado para nós que já somos independentes e livres.

    Se queremos ter um país que é nosso, então devemos mandar na nossa terra, como eles mandam na terra deles. E até na terra dele tratam-nos mal. Isso é só uma parte e gostaria que os nossos africanos criassem uma ligação forte para podermos ser contra os outros, porque eles são contra nós quando, sobretudo, a gente não os favorece financeiramente.

    Sente-se um nacionalista?

    Sim, acho que já nasci nacionalista e rebelde ainda por cima. E táctico também porque não aceitei qualquer coisa, sobretudo a submissão. Bazei e hoje não estou nada arrependido, muitos que me condenaram ontem hoje telefonam para saber essa tónica.

    Quais são as pessoas que o condenaram?

    São várias, alguns nacionais e estrangeiros, mas regra geral relacionado com indivíduos do oportunismo.

    Não foi nada mais do que isso, foi o oportunismo que jogou e a história está aí a dizer tudo. Muitas destas pessoas já desapareceram, não estão na cena política e uns estão a me olhar de esguelha: ‘o gajo está aí, se não lhe tivesse feito tanto mal’. Imagine se eu vivesse no país das confrontações, não é verdade. É uma reflexão normal e não estou nada arrependido de fazer o que fiz.

    Considera Elias Dia Kimuezu o rei da música angolana?

    Não sei quem deu esse título, porque muitas das vezes o Elias disse-me a mim mesmo que ele é um rei sem coroa. Isso é derivado dos seus problemas, das suas carências. Outro dia ele teve problema com uma casa, que lhe foi entregue, e de repente sem kumbú para pagar. Aquelas lutas que se tem para adquirir coisas. Então, um rei não tem estes problemas.

    Mas considera-o como o rei da música angolana ou não?

    Eu considero o Elias um grande interprete da música de Angola. Se entrarmos na tónica do kimbundu, então porquê não? Da mesma forma que me consideram o embaixador porque estou lá fora a representar a nossa terra, mesmo sem ter o passaporte diplomático. Mesmo sem ser considerado por algumas esferas oportunistas do sistema político. Mas isso não tem nada a ver uma coisa com outra.

    Fala muito de política, está filiado em algum partido?

    Não. Nunca tive. Tenho alguns amigos, que o são por causa da sensibilidade e o sentimento. Não são meus amigos por pertencer aquilo ou acolá.

    Mas chamou a atenção de muitas pessoas o facto de ter actuado num espectáculo após uma campanha eleitoral do MPLA, com um cachecol deste partido ao pescoço.

    O cachecol foi posto, mas é da mesma forma que fui para a Jamba sem ser da UNITA. Eu fui para a manifestação do MPLA sem ser do MPLA. Seja como for, o que aconteceu é que isso não constitui para o Bonga qualquer problema porque já cantei em festivais de outros partidos políticos, como o Comunista ou partidos de direita. Não constitui qualquer problema, é uma opção que tomo para ir trabalhar. Faço o meu trabalho e depois quero o meu cachet.

    Não se sente tentado por algum partido em Angola?

    Nada. Nem em Angola nem em outras partes do mundo.

    Foi amigo de Jonas Savimbi?

    Ah! Do Jonas?… De personagens de partidos. Como disse atrás, sou amigo de vários indivíduos e sou amigo deles derivado do carácter e do temperamento dos indivíduos. E mais nada.

    Fim de citação.

    Quando é que regressa definitivamente a Angola?

    Quando me fazem esta pergunta, eu pergunto se já aconteceu alguma coisa que facultasse este meu regresso? Não vou vir aqui a revelia das coisas que são construídas lá fora para segurar o ganha-pão e dos meus familiares e artistas que me acompanham, as casas de disco, produção, Lusáfrica e a 3D Family. O Bonga não é maluco, porque muitos já cometeram o desaire de vir a correr e se arrependeram, pondo em cheque a própria família e o aglomerado a que pertenciam. Acho que aí eu sou um bocado ‘vijú’, porque se não se tem visão às vezes estrangula-se tudo e vai por água abaixo.

    Mas o Estado não chegou a lhe ceder um terreno em Luanda?

    Isso não é assim que se faz. Tem a ver com o governador e havia uma possibilidade da mesma forma que o Bana, de Cabo Verde, também houve um terreno mas que depois tivemos que pagar. O custo não é o de facto, mas é o parcial. Isso é tudo muito fácil, mas agora não quero isso fique no apoio do exagero, da recuperação e de se dizer que já se deu aquilo. Como disseram há tempos que tinham me dado uma boate e eu bazei…

    Não deram?

    Não deram coisa nenhuma e nem deviam ter dado, porque não tinha nada a ver e nunca pedi. Não é isto que estava em causa. Então eu que estou no auge do sucesso nas europas da vida, vinha para Angola e deixar cair tudo que tinha, os ouros e as platinas, deixar cair os espectáculos com aquele grupo do João Macau e Tião, que eram os indivíduos que estavam comigo e faziam uma data de espectáculos em tudo que era lugar. Vinha para aqui ter uma discoteca e ficar tudo tipo está-se bem? Espera aí, isso não cola bem ao boato que colocou na altura. Nós na altura estávamos a ser vítimas de uma pressão de adesão de determinadas esferas, de indivíduos com peso sonante e esta foi a altura conturbada por querer-se a qualquer preço que os indivíduos que fossem conhecidos. Felizmente para mim não estou nada arrependido de ter tomado a posição que tomei. Recuei no tempo e no espaço, se calhar recuei como o guerrilheiro para melhor avançar. E tenho avançado de facto.

    Quando vê o país, que um dia deixou e teima em regressar definitivamente, continua a ter uma lágrima no canto do olho?

    Essa lágrima no canto do olho tem a ver com a minha motivação das coisas, que passa pelo reconhecimento humano de toda esta multidão pela qual a gente lutou, se enlutou e trabucou.

    É o povo anónimo, os mussequeiros.

    Sabe que nasci no Quipiri e mesmo na família chamavam-me por matuense, por ter nascido no mato. Mas impusme pela força no seio da família a essas barrigas inchadas dos miúdos, os charcos de águas putrificadas, os cubicos que caiam com as chuvas e esse povo iletrado que não sabia sequer exprimir um sentimento de reivindicação. A lágrima no canto do olho mantém-se derivada de uma situação que ainda existe em maioria, claro que tenho de saber que há melhoramentos. Mas o melhoramento prioritário não é forçosamente um banco, um hotel ou uma piscina ou apartamento luxuoso. E a lágrima no canto do olho está também de muita emoção sobretudo do não reconhecimento do valor porque não alinhei, mas espera aí.

    Quando diz não alinhar, significa o quê concretamente?

    Nas jogadas e nos partidos, naquelas opiniões de sentido único. Continuei eu e isso dá-me imensa satisfação porque cria-me muito mais estofo, sou muito mais sólido para, inclusive, ter a coragem de ir a casa de qualquer indivíduo e falar com ele. Comer a comida dele e falar com ele na boa, sem qualquer problema. Não faço jeito a ninguém. Estou assim normal, a minha opinião é a minha opinião e não é aquilo que me disseram para dizer.

    Portanto, já há uns putos que me reconhecessem e se têm que me reconhecer não é por causa da minha banga fukula, kota cheio de estilo, que antigamente dizia manda bué de garina, mas não é por aí. Isso é pejorativo. Falem da pessoa mas tentem conhecer quem é no meio de tudo isto. E nós não temos tido a preocupação de conhecer os indivíduos tal como eles são.

    De onde vêem? Por onde passaram? Ficamos naquela da facilidade, analisar uma pessoa só pela aparência. Nós os angolanos conhecemonos muito mal, é triste que assim aconteça, porque perdemos muito tempo com os futebol, garinagens, supérfluos e superficial. Nos outros tempos tínhamos essa culpa, mas também o inimigo era comum? Só tínhamos um inimigo, mas depois passamos a ter vários inimigos, hoje em dia há vários indivíduos que só nos apontam o dedo e gente não sabe o que ele está a dizer. Pode até ser um potencial inimigo com que a gente está a lidar e pode nos prejudicar a vida, porque não há abertura e a gente não se conhece de facto. E quando acontecem coisas lá fora é mais fácil programarem elementos que seja puxado, porque convém do que as outras coisa que a gente já faz a tanto tempo.

    ‘VIVO ENTRE LISBOA E PARIS’

    Quando adoptou o nome Bonga Kwenda já previa que seria um cidadão a andar pelo mundo?

    Risos. Nem tinha ideia do que iria acontecer, nem sequer tinha certeza de ser artista, continuar e ser profissional. Mentira. Não me venha contar estórias de que quando nasci tinha já uma veia artística, isso é tudo ‘makutu’. Não foi nada assim. Fui solicitado a cantar os temas que tocada nas noitadas com os caboverdianos em Roterdão, com a convivência do Mário Rui e do Humberto Bettencourt, que é cabo-verdiano. E quem nos propõe foi o produtor do Morabeza Record, meu amigo Junga Di Biluka, maravilhoso personagem, que me diz: ‘essas coisas que tú cantas aqui, quando estás aqui tens a saudade da sua terra, vamos ver se colocamos isso num disco’. Ele nem sabia o que iria cantar, nem os músicos sabiam o tema. Só que depois foi um disco e os políticos deviam ter falado dele um dia, mas não falaram, se calhar porque nesta altura do campeonato ainda não convém. E foi um disco que passou recuperado por todos os partidos políticos de Angola.

    Está-se a referir do Angola 72?

    Estou a falar do Angola 72, exactamente, que foi a carta de visita que até hoje ainda anda aí a ser procurado porque querem ter na prateleira em casa ou porque o disco desapareceu.

    Este foi o disco, porque se tenho um disco de ouro, platina ou de diamante é esse Angola 72 que contribuiu tremendamente. Era tudo quanto eu tinha cá dentro que saiu e explodiu. Isso é a minha verdade, minha vivência, é a África e Angola, portanto vamos por aí. E sobretudo mobilizar a juventude, mas não para ser carne de canhão. Para desenvolver-se, reivindicar, estar no seu país e desfrutar de tudo isso. Este foi o ponto de partida e no ano seguinte pediram-me outro disco. Mesmo com as pessoas que no tal ano consideram o tal Bonga como ‘persona non grata’, não pode entrar.

    Depois veio outro, outro e mais outros. Veja onde já chegou, quase 40 discos.

    A dado momento da sua vida tiveste de abandonar Portugal durante 18 anos, tendo regressado apenas em 1988. Quando passas por este país sentes algum reconhecimento pelo trabalho que fizeste?

    Há uma espécie de memória curta dos europeus e que nós, às vezes, também acompanhamos. Se tivesse que fazer as coisas para que fizessem algo para mim, estava feito. Não é por aí. A gente quando dá esmola a um pobre, ajuda um artista que quer colaborar não peço dinheiro nenhum. Então, fui recordista de atletismo aqui em Angola e em Portugal também, mas dá-me a impressão que cada vez a pessoa tem de estar a fazer mais e mais. Procuram que a gente justifique estas coisas todas. As pessoas esqueceram tudo rapidamente, mas paciência. Também não estou a pedir nada. Estamos aí em vida e continuamos. E nos locais onde nos sentimos melhor é construirmos um ninho com os familiares chegados, que também está a ser difícil porque está uma vida complicada, financeiramente para toda gente, uma crise das famílias que já não se encontram e está um divórcio das coisas do antigamente que já não definem praticamente coisa nenhuma. Está assim uma chatice na convivência das pessoas, há sempre um interesse qualquer material. E isso está complicado, mas estou a falar da minha experiência. Sabe que sou conselheiro e às vezes os jovens telefonam porque sou tio de toda a gente. Há sempre atrás um pedido que vai ser feito e se não satisfaz, eles dizem esse ‘kota também’. Falando de Portugal, quando passo por lá quero encontrar prioritariamente os angolanos residentes, porque não posso vir todos os dias a Angola. Fica caro e não tenho esse kumbú. Nós que nos encontramos na diáspora seria bom reunir os miúdos, falarmos das nossas coisas e matarmos as nossas saudades.

    Construir um aglomerado nosso sem passar por estas associações, partidos.

    Não tem mais definição, é a amizade em si que tivemos num passado muito recente. É complicado fazer-se isso, primeiro porque só uns é que dão e outros não, porque não têm possibilidade. Depois porque os valores já não são os mesmos. As dificuldades acrescidas fazem com que estejamos afastados uns dos outros. Isso é um bocado triste, já não é aquela badalação de outros tempos. Demos a outra desvantagem de não termos negros na Assembleia da República e nos partidos políticos em Portugal. Não temos negros no Governo de Portugal. Como já foi no tempo da outra senhora.

    Quero recordar que o indivíduo jornalista que fazia os noticiários das 20 na televisão portuguesa era um negro de Angola. É complicado entender hoje. Se calhar como no outro tempo se praticava a psico-social para dar a entender que se promovia os negros, o Adriano Parreira era portanto este jornalista e outros mais. Mas o 25 de Abril trouxe o quê? Também devia trazer a fusão destes povos, daqueles negros que estudaram com os brancos em Portugal. Mas onde é que estão eles? Onde é que estão os negros destacados em Portugal? É mais fácil encontrar na França um antilhano ou francófono no governo francês, destacado como chefe ou director. Esta é uma preocupação dos nossos miúdos que já nasceram na Europa, que nos perguntam: ‘ó pai, estão aonde os mbumbus? Mas nós nascemos aqui na Europa, estudamos como os brancos.

    Onde é que vives actualmente?

    Eu faço Paris e Lisboa constantemente. Em Paris porque é lá que tenho, contrariamente ao que diz muita gente, e não em Lisboa onde tenho o meu bussiness. Em Paris que está a casa de disco, que é a LusÁfrica, que é a mesma da Cesária Évora, é lá tenho o agente artístico que me arranja trabalho, que é a 3D Family, que tem uma agência artística fabulosa. É lá também onde fazem a propaganda e a publicidade. Em Lisboa só vou por tenho também casa, é lá que há os funjes, as notícias são mais frescas. Mas também ouvi dizer que nós que estamos cá fora não podemos votar, fomos vetados.

    Mas então espera aí, o angolano que se preza tem de votar. Mas dizem que nós é que mandamos as fofocas para complicar o país. Vamos tentar resolver isso, temos de estar em sintonia com o país de origem, porque eu que canto Angola estando lá fora quero que me reconheçam aqui.

    Não votou nas eleições passadas? Passadas não, porque estava fora. Só votei nas eleições antepassadas.

    ( entrevista concedida ao Jornal O Pais) 

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