No dia 7 de Janeiro, sexta-feira, em Porto Amboim, um jovem casal selou a sua história de amor com o matrimónio. Tal enlace seria mais um entre os milhares que se registam e nem mereceria estas linhas se a noiva não fosse Kaina Pinto, uma jovem que há 10 anos entrou pelas nossas casas, através da televisão, e afirmou ser seropositiva. Estava infectada pelo Vírus de Imunodeficiência Humana (VIH).
A confissão caiu como uma bomba e não deixou ninguém indiferente. O grito de Kaina chocou a sociedade angolana pela positiva, já que trouxe ao de cimo uma realidade geralmente escondida. Ela mostrou que o vírus da sida não escolhe raça, cor, condição social ou sexo, mas pode ter um rosto. No caso, um rosto muito jovem, bonito e angelical: na altura ela tinha apenas 20 anos.
O depoimento de Kaina ajudou a quebrar algumas barreiras do preconceito e do estigma em relação aos portadores do vírus e conseguiu envolver ainda mais a comunidade médica e a sociedade no combate à doença, numa altura em que falar de sida era tabu e significava exclusão social.
Rompido o silêncio, Kaina decide lutar por viver, concretizar os seus sonhos, ajudar os outros portadores a encarar a sua condição e mostrar à sociedade que merecia a mesma dignidade que os não portadores do VIH.
O nascimento do Doquinhas
Nas idas e vindas da sua missão de advocacia, Kaina conhece Docas, com quem começa a namorar. Enfrentam o preconceito e a rejeição mas, ainda assim, optam por juntar os “trapinhos”. Dois anos depois, nasce o Doquinhas, o primogénito do casal, agora com seis anos e a estudar na 1ª classe.
A gravidez de Doquinhas foi mais um dos muitos desafios que Kaina teve de enfrentar. Primeiro, teve de fazer uma inseminação artificial. Confirmada a concepção por um teste de farmácia, Kaina disse ao companheiro que estava grávida. Ele chamou-lhe louca, devido ao seu estado serológico. À inquietação de Docas juntou-se o diagnóstico médico que determinava que pelo facto dela estar a tomar um certo medicamento, a gravidez era inviável. Tinha que ser interrompida. Kaina não se resignou e foi à procura de outras opiniões médicas. Todas eram unânimes: a gestação devia ser interrompida, sob pena da criança nascer com alguma anomalia. Enquanto esperava tomar uma decisão definitiva, fez uma ecografia que lhe deu a certeza de que aquela criança viria ao mundo de qualquer jeito. “Quando eu vi o coraçãozinho do meu filho a bater, decidi não interromper a gravidez”, conta.
Nove meses passados, nascia o Doquinhas de uma cesariana, na Maternidade Lucrécia Paim. Kaina seguiu a recomendação do corte de transmissão vertical do vírus, sendo a primeira seropositiva a beneficiar de tal método. Kaina confessou que partiu para a aventura de ter um filho “porque precisava de um motivo muito forte para continuar a viver”. Apesar de ser já uma vencedora por ter rompido as barreiras do preconceito, acabou por realizar o sublime sonho da maternidade.
Entre redobrados cuidados médicos e a atenção que devia dar ao seu filho, procurou desempenhar da melhor maneira possível o seu papel de mãe e esposa, não descurando o activismo social, tarefa que abraçou desde que tornou pública a sua condição de seropositiva.
Seis anos passaram e há cinco meses teve o seu segundo filho João Jorge, outro rapaz, seguindo o mesmo procedimento. Tal como o pai, ambas as crianças são seronegativas. Com os dois ela encerra o capítulo da maternidade. “Fico por aqui”, diz Kaina, que não se considera uma mãe especial, “mas quero cuidar dos meus filhos com todo o amor e carinho”.
Altos e baixos da vida conjugal
Kaina e Docas não estavam a viver um conto de fadas. Por isso mesmo a sua vida conjugal também sofreu abanões. Entre momentos altos e baixos, “como de qualquer outro casal”, garante ela.
As turbulências vividas quase ditaram o fim da relação. À partida pode-se pensar que os conflitos entre o casal eram originados pelo facto da mulher ser portadora do VIH, mas, na verdade, entre outras questões domésticas, o ciúme de Kaina era o que mais abalava a estrutura familiar. “Sou muito ciumenta. Quero-o só para mim”, confessa. Os familiares e amigos foram muito importantes para a manutenção da relação.
Antes da cerimónia ainda conseguimos “arrancar” algumas palavras ao reservado Docas, o noivo de Kaina, que não se sente um herói. Apenas confessou que a sinceridade e a coragem de Kaina o encantaram. Para a paixão foi um pequeno passo.
Docas considera que viver com ela “não foi tão difícil” quanto se possa pensar. “Sempre trabalhei e lidei com pessoas nesta condição. Sabia das formas de transmissão e de protecção, por isso foi fácil”, explica.
De poucas palavras, tal como Kaina nos advertira, Docas disse que decidiu ficar com a mulher sem pensar na sua família ou em quem quer que fosse. “A decisão foi minha. Podiam falar o que quisessem”.
O casamento de Kaina e Docas
Depois de oito anos de convivência, dois filhos, barreiras transpostas e alguns projectos materializados, para Kaina Pinto faltava realizar o sonho do casamento.
No princípio da tarde do dia 7 de Janeiro, em Porto Amboim, várias pessoas estavam envolvidas numa azáfama. Faziam-se os últimos preparativos para a cerimónia e a boda de casamento. Os noivos, Kaina e Docas, eram as figuras centrais.
Na marginal de Porto Amboim, o salão já estava decorado. Kaina esmerava-se por estar deslumbrante diante do noivo e convidados. Já vestida, entre a maquilhagem e um e outro acerto, foi conversando connosco.
Falou do essencial e emocionou-se ao falar de tudo por que passou devido à sua condição. Mas garantiu que aquele era um momento muito particular e feliz da sua vida, pois “tive o privilégio de passar pela vida, ter marido, filhos, constituir família e casar-me”, disse com os olhos cheios de lágrimas.
Como em todos os casamentos, a noiva é o centro das atenções e ninguém se lembrou do noivo. Um telefonema encerrou o diálogo. Estava na hora de Kaina partir, pois Docas já esperava por ela.
No local da cerimónia civil, o conservador, diante dos noivos, dos padrinhos de ambos e das demais testemunhas, fez o trabalho e as recomendações da praxe.
Carolina Marisa Tómas Pinto “Kaina”, 30 anos, e Domingos António “Docas”, 34 anos, disseram aos presentes que era de livre e espontânea vontade que se casavam e prometeram amar-se, respeitar-se e cuidar um do outro, todos os dias das suas vidas.
O compromisso foi selado com a troca das alianças e com um beijo. Carolina adoptou o apelido do marido. Antes de tudo isto, Docas não sabia, mas Kaina deixou-lhe a seguinte mensagem: “Docas obrigada por me ajudares a viver este momento. Obrigada por seres o pai dos meus filhos.
Obrigada por me ajudares a suportar tudo, mesmo sabendo da minha condição… Amo-te”.